quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Martim Lutero: Estudo de "A liberdade de um cristão"

“Lutero fôra tão marcado expoente de seu tempo, e refletira tão fielmente as lutas do século dezesseis, da Igreja, do Estado, e entre ambos, há quem não perceba ter sido o reformador tremenda força individual nesses conflitos, um poderoso moldador da opinião pública, um defensor das liberdades humanas. Homem não só da sua época como de todos os fastos.”

Charles Francis Potter, teólogo e historiador das religiões norte-americano em sua obra “História das Religiões, tomo II”. 

Os séculos XV e XVI incluem grandiosas mudanças que se perpetuarão pelos séculos seguintes, fazendo esse período se lembrado como época de revoluções em tantos âmbitos, um marco de transição da dita idade media para a modernidade. Várias são as mutações, em áreas diversas do cotidiano das sociedades; a descoberta do Novo Mundo, as pestes, o fim da presença moura na Ibéria, o movimento Humanista, são fatores contribuintes para entendermos tal período como revolucionário. Porém me aterei nesse estudo em uma crucial série de acontecimentos que culminarão com o fim do monopólio da Santa Igreja Católica sobre a cristandade ocidental: a reforma e seu reformista por excelência, Martinho Lutero. Esse personagem é um imprescindível para a compreensão do que foi o medievo submisso ao grande poder da igreja, e o que é o homem que transita dos grilhões da vassalagem medieval para a libertação desses, tanto material quanto espiritualmente. É essa a grandeza de Lutero, o cônego, doutor, teólogo, pregador que busca um cristianismo mais pio e verdadeiro; propões não só uma reforma religiosa, seus postulados são tão obstinados que extrapolam os limites da religião, tão ligada à vida social cotidiana da época. Toda a lógica hierárquica, social, da Europa cristã quinhentista, é colocada em xeque.
Proponho-me a analisar a Reforma protestante pela ótica de Martinho Lutero em sua obra “A Liberdade de um Cristão”. Nortearei as análises em seu âmbito teológico e suas conseqüências práticas para as sociedades em que foram introduzidas; a ruptura com a tão tradicional Igreja Católica Romana e o aparecimento de diversas doutrinas, tudo promovido pela liberdade cristã, não a obra, mas seu significado.

O poder foi colocado em questão. Quem detém o poder de ordem no mundo? Para a cristandade ocidental européia a resposta é simples: Deus, representado na terra pela Santa Igreja Católica Romana. Assim, havia então um monopólio de poder, concentrado nas mãos de uma instituição forte e tradicional, a Igreja; com suas raízes já profundas e tendo como cabeça o Papa, então o representante do próprio Deus. Para contrapor a igreja, contrapor a Deus, só havia uma via, a própria Igreja, ou seja, um homem da própria Igreja; Martinho Lutero, então, como homem da Igreja, faz justamente isso. Crítico que era, propõe reformas que culminarão em uma total desavença com sua instituição mãe e o surgimento de um novo cristianismo, uma nova Igreja, a chamada protestante.

Martinho Lutero nasce em Eisleben a 10 de novembro de 1483, filho de Hans Luther, homem do campo e dono de minas de cobre, e Margarethe Lindemann. Desde crinaça seu pai, em busca de melhorar as condições da família, envia Lutero à escolas. Após alguns anos de estudos em escolas em Mansfeld e Madegburgo, onde precisa mendigar para conseguir as refeições, ja em Eisennach, onde a mendicancia era mais generosa, atrai a atenção de Frau Cotta, senhora maternal, que o tomou para morar em seu lar. Sua alma se espande, sente-se revigorado e seu labor escolar começa e revelar-lhe incomum habilidade mental.

Após uma melhora dos negócios do pai, em maio de 1501, já com dezessete anos, matricula-se na Universidade de Erfurt. Não se sabe muito de seu períuodo na Universidade, mas prodigiosa foi sua carreira, pois em 1502 cola grau de bacharel em artes. Na primavera de 1505 alcança o grau de mestre. Repentinamente, em julho de 1505, Lutero deixa a Universidade para se tornar monge. Acontecimento nunca explicado pelo mesmo.

Nos dias de morada com Frau Cotta teve contato com monges, a familia da mesma havia criado um mosteiro, os franciscanos eram companheiros de Lutero nesses dias. Mas a explicação para sua inclinação aos votos monásticos pode residir em sua personalidade, seus anseios, seus medos.  Quando crinaça, ou mesmo quando jovem, “o pequeno Martim, positivamente, se arreceava do Deus, que lhe era descrito como juiz crual e irado, , um super-lobishomem dos céus, mas, acima de tudo, se apavorava com o Diabo, as feiticeiras e os espíritos malígnos. Até na maturidade, quando não mais temia a Deus, reputando-o ‘poderosa fortaleza, baluarte irredutivel’, Lutero se atemorizava com o Diabo.”[1] Além de seu eterno temor, e interesse, pelas coisas espirituais, conta-se que certa vez, durante uma tempestade em 2 de julho de 1505, ao aproximar-se de Erfurt, Lutero, numa especie de crise emocional grita: “Acuda-me, cara Sant’Ana! Tornar-me-ei um monge!”. O fato é que se tornou monge Agosatiniano, em Erfurt, a 17 de julho de 1505.

Como clérigo logo se destaca, e já no outono de 1508 foi destacado para reger as cadeiras de ética e filosofia na Universidade de Wittenberg.  Nesses anos é imbuido de um frenesi ascetico e de devoção que logo lhe atribui a reputação de santidade, mas inda não encontrou sua procurada paz de espírito. Numa de suas leituras em sua cela na torre de Wittember, uma passagem o atormenta, o verso 16 do primeiro capítulo da Epístola aos Romanos de Paulo: “O justo, porém, vive da fé”. Ai reside o principio filosofico, teológico, e objetivo de seu pensamento. Abandona as penitências e mortificações da carne para refletir sobre a admoestação paulina. Para o historiador Chales F. Potter ali se inicia a Reforma. É pertinente notar que em 1509 recebe o grau de Baccalaureus ad Biblia[2], o que lhe permitia discursar sobre o livro sagrado.

            Sua peregrinação à Roma em 1511 não logra menos reflexos em sua alma abalada pelo ímpeto de verdade. Existe relatos, presentes em anotações de seu filho, que na cidade Sagrada, pelo sangue de mártires vertido, o monge Lutero, ao tratar de assuntos referentes a ordem dos Agostinianos, vai em visita até uma escada que se atribue ser proveniente da sala do tribunal de Pilatos. Essa, transportada até Roma para que todo peregrino tenha nove anos de indulgência por cada degrau galgado de joelhos rezando; Lutero inicia sua penitencia nos degrais, mas no meio lembrou-se dos versos paulinos na Carta aos Romanos e pondo-se de pé desceu os degrais. Na volta, não menos imporante de se destacar, em Milão, visitou o local onde Santo Ambrósio batizou Santo Agostinho; observou que ali haviam sacerdotes diferentes de todos que ja tinha encontrado. Estes recusavam a vassalagem ao papa, segundo Santo Ambrósio.

            Após sua volta, ainda em 1512 é sagrado doutor em Teologia. Após isso, os anos de 1512 à 1517 são cinco anos de arduo trabalho empregado em estudos, conferências, pregações, fazendo do jovem doutor um célebre cônego de grande reputação.

            No mesmo ano de 1517, angariando fundos para completar a obra da Igreja de S. Pedro, em Roma, um monge de nome Tetzel vende indulgências em nome do Papa nas redondezas de Wittenberg. Com incanssáveis sermões Lutero lança seu protesto contra essas prática, mas sem conseguir o êxito pensado. No dia 31 de outubro do mesmo ano, Lutero, lançando mão de uma prática corrente da época, pregar panfletos nas portas das igrejas, é revolucionário no tocante ao conteúdo do panfleto: são 95 teses, críticas à Igreja, sua hierarquia e ao próprio Papa. São crpiticas com conteúdoácido, atacando pessoalmente a fugura papal em alguns casos. Dentre as teses se destacam algumas, cito aqui as de número 36 e 82.

“36. Todo cristão verdadeiramente arrependido, tem plena remissão de culpa e penitência, mesmo sem as cartas de absolvição.
(...)
82. Por que o Papa não esvazia o purgatório pela caridade?”

            A partir das 95 teses são engendrados diversos acontecimentos que não cabe a este breve trabalho abranger , apenas cita-los a medide de sua importância para observação de seu foco; o intuito aqui é debrucar-se em entender as revoluções teológicas e as consequencias sociais oriundas de tais revoluções. Dentre as garndes obras de Lutero em sua luta e protesto contra a Igreja, seus dogmas e diretrizes, é pertinente a análise da “A Liberdade de um Cristão”, obra publicada em novembro de 1520; ao mesmo tempo Lutero redije uma carta ao Papa Leão X, carta essa que não chegou a ser enviada. Os dois documentos podem ser corroboradores da tese de que apesar de querer, a princípio, uma reforma interna na Igreja Católica, o agostiniano não reduz suas idéias frente ao grande poder da Igreja. Escreve textos que em alguns momentos soam gnósticos, em outros revolucionário; textos como “A Liberdade de um Cristão”, ou sua carta ao Papa, onde Lutero “(...)now wrote him as an equal, offered him advices as though he were the papal father confessor, and expressed his evangelical views without a sing of retraction.” [3] Lutero não só escreve sobre a liberdade do cristão, mas a aplica em sua própria experiência, tratando a alta hierarquia eclesiástica com igual, oferecendo seus conselhos, críticas, até mesmo admoestando como um confessor.

            Em  “A Liberdade de um Cristão” está presente um lutero cheio de vigor para enfrentar as ordas eclesiásticas com toda sua força, até mesmo com sua vida se necessário. Afirma sua vontade de recriar as estruturas de poder da Igreja e moldar nas mentes uma nova idéia de salvação, a salvação pela fé, a justificação sola fide, somente pela fé, assim como na revelação na Epístola aos Romanos de Paulo. A justificação como processo gradativo de erradicação dos pecados, tradicional idéia cristã Católica, é substituida em Lutero, já em seu sermão “Duas espécies de Justiça”, por uma justificação como consequência imediata da fé que se apreende. Diz Lutero que “a presença redentora de Cristo traga todos os pecados num só instante”. O que se segue gradualmente é o processo de santificação.

“(...) na ‘Liberdade de um Cristão’, de 1520 [a obra] assume a forma de uma forte antítese entre as mensagens do Velho e do Novo Testamento, de uma atítese entre mandamentos divinos de cumprimento impossível e suas promessas de redenção. O propósito do Velho Testamento, diz-nos agora Lutero, consiste em ‘ensinar o homem a conhecer-se’, de modo que ‘possa ele reconhecer sua incapacidade de praticar o bem e possa desesperar-se ante essa incapacidade’ – chegando a um desespero análogo ao que o próprio Lutero sentira, de forma tão aguda. Essa é ‘a estranha obra da Lei’. Já o Novo Testamento, em contraste, tem por propósito reconfortar-nos que, embora não tenhamos capacidade de atingir a salvação ‘tentando cumprir todas as obras da Lei’, podemos, porém, atingi-la ‘rápida e facilmente por meio da fé’”[4]

            Em Lutero e sua obra focalizada é presente um lampejo da bandeira de liberdade religiosa. Alguns trechos são uma ode ao fim da vassalagem a qual a sociedade era submetida pela outorga de uma legitimada soberania dos clérigos, supostamente legitimada pelo próprio Deus. Essa liberdade muitas vezes extravasa os limites da religião alcanlçando significado prático na vida social. Afirma ainda Lutero que todos são perfeitos senhores de si, uma afronta á logica de vassalagem socialmente instituida no período.

“A Christian is a perfectly free lord of all, subject to none.
A Christian is a perfectly dutiful servant of all, subject to all.”[5]

            Seus escritos são categóricos ao afirmar a filosofia paulina como o correto caminho para seguir a cristo, e a cristandade européia deve observá-lo. O poder para de recair sobre o fiel e passa a ser do próprio fiel. É ele, o fiel, e não mais uma instituição, ou um clérigo investido de um manto episcopal, quem tem o poder de se salvar, se perdoar; tudo isso, pela graça divina. Não há lei divina alguma instituindo um poder à Igreja Católica sobre a cristandade. A lei reside em amar uns aos outros. E Lutero se apropria de Paulo em sua Epistola aos Romanos: “A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros, pois quem ama ao próximo cumpriu a lei.” [6]

            Lutero a priori é compromissado em repudiar a idéia segundo a qual a Igreja possui poderes de jurisdição, poderes para regular a vida dos cristãos. É contrário a idéia da Igreja fazer o papel que cabe ao Estado. Não chega ao ponto de laicizar o Estado, mas é categórico em defender sua autonomia, e seu papel enquanto assegurador da paz civil entre os pecadores.

            Suas idéias são fortes e perpetrarão durante muito tempo. As reformas se dão; enraizadas, com suas devidas singularidades de região para região, confluem sempre para o cerne revolucionário proposto por Martinho Lutero, essa mudança teológica e social no cotidiano da cristandade. Um novo tipo de prática cristã – até então desconhecida, ou em outras ocasiões atribuías à Igreja primitiva do tempo dos apóstolos – erige desse movimento.

Como humanista, aquele com uma “percepción directa de su próprio mundo”[7] , fica na história suas idéias de mudança na constituição medieval de sociedade. Essa subordinação cega aos dogmas eclesiásticos outorgados pela Igreja Católica Romana de sues fiéis, sejam indivíduos ou mesmo Reinos e Estados, tem seus dias contados a partir de então. Percebendo as incoerências entre O livro, a Bíblia, e as práticas, o monge Lutero propôs uma reforma que, como foi visto, logo se mostrou uma grandiosa revolução.


[1] POTTER, Charles Francis. Historia das Religiões, Ed. Universitária, 1944.  p. 374

[2] Do latim, Bacharel em Bíblia.

[3] LUTHER, Martin. Christian Liberty. Fortress Press, 1957.

[4] SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Cia. Das Letras, 2006. p. 291.

[5] LUTHER, Martin. Christian Liberty. Fortress Press, 1957.

[6] Bíblia Sagrada, Epístola aos Romanos. Cap. 13 vers. 8.

[7] ROMANO, Ruggerio; TENENTI, Alberto. Los Fundamentos del Mundo Moderno. Madrid: Siglo XXI, 1972.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Os serviços de inteligência no Brasil

Generais-Presidentes forjam ditadura
com bases nos serviços de inteligência
Me engajo aqui em explorar as formas que os serviços de informação atuaram no período da ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970; no momento e no decorrer do movimento engendrado a partir do Golpe de 1964. Para tanto entendo que é preciso recuar até a década de 1920 e entender os motivos da instalação desse tipo de serviço na esfera do governo e seus desdobramentos na história brasileira.
 
Na década de 1920 devido a conturbada situação social, agitações operárias, movimento dos tenentes, “pela segurança da Pátria”, é institucionalizada por essa demanda um esboço de serviço de inteligência, o Conselho de Defesa Nacional, para supervisionar e abastecer as instancias competentes do Estado com informações entendidas como pertinentes para o governo.

Algum tempo passado, após a regularização da situação de Getulio Vargas no poder varias instancias de inteligência do governo foram se ajustando até concentrarem no Conselho Superior de Segurança Nacional (CSSN). Com o advento do Estado Novo, em 1937, o Presidente Vargas decreta uma nova Constituição Federal que, em seu artigo 165 responsabilizava o Conselho de Segurança Nacional (CSN) pela coordenação dos estudos relacionados com a segurança.

Depois de Vargas e seu Estado Novo, num contexto de Guerra Fria, alguns órgãos antes instituídos com caráter provisório, devido a II Grande Guerra, são institucionalizados de forma permanente, como no caso dos serviços de inteligência, a época, o CSN. A Guerra ideológica, o anticomunismo, eram máximas das quais os governos alinhados não podiam fugir, por isso a necessidade de um órgão anti-subversivo. Em 1946, o então Presidente Dutra, a 6 de novembro decreta a lei nº 9.775-A divide sua secretaria em três seções. A segunda seção, o que viria a ser uma tradição, encarregou-se de coordenar os serviços de informação e contra-informação. A responsabilidade coube ao Sfici, “organismo componente da estrutura do Conselho de Segurança Nacional que passaria a ter o encargo de tratar das informações no Brasil.” ( Decreto-lei nº 9.775-A, de 6 de setembro de 1946).

No ato do Golpe Militar de 1964, a 1 de abril do mesmo ano, a instituição encarregada do serviço de informação era o Sfici. Para o coronel Ary Pires, no inicio dos anos de 1960 a segunda seção do CSN estava bem consolidada, “(...) estruturado nos moldes dos congêneres de países mais experimentados e em condições de atender aos múltiplos e variados aspectos da realidade brasileira, já apresenta um acervo de trabalho dos mais fecundos e eficientes propiciando elementos essenciais às decisões do governo (...)”. (OLIVEIRA, Lúcio Sérgio Porto. A história da Atividade de Inteligência no Brasil. Brasília: Abin, 1999). Em contraponto ao coronel Ary Pires, o general Tinoco, que participou da ocupação do Sfici em 1964, desacredita nas afirmações do Coronel. Para ele a instituição não era sustentável, e baseava seus estudos em “função de recortes de jornal”. (Carlos Alberto Tinoco, em entrevista ao Cpdoc, 1998).
 
Estudante é perseguido nas ruas do Rio de Janeiro, 1968

Na altura do Golpe, em 1964, o Sfici estava sob a direção de um oficial da marinha, o capitão-de-mar-e-gerra Ivo Corseuil; legalista, apoiava as reformas e o Governo do Presidente Goulart. Para esse ator político de primeiro plano do período, a agencia a qual servia estava sem recursos. Mas nem por isso deixou de averiguar a realidade e a estudar bons conselhos para o Governo. A questão era que o Presidente muitas vezes preferia opiniões pessoais às dadas pelo Sfici. Para Corseuil, de erros como a nomeação do general Galhardo para o comando do III Exército, viria a fraqueza de sustentação militar do Presidente, fraqueza esta que em grande medida contribuiu para uma falta de embate ao movimento golpista dos militares insurgentes. “Goulart [na ocasião da nomeação de um comandante para o III Exército, o mesmo que veio a se rebelar contra o governo] preferiu a opinião do ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, contra o parecer unânime dos oficiais do CSN.” (CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Jorge ZAHAR editor, 2005).

Deu-se o Golpe, os militares assumem o poder, e logo nos primeiros meses após o 1º de abril, com o dever de “assegurar a estabilidade da revolução”, o Governo do então General Presidente Castelo Branco, a 13 de junho de 1964, cria o Serviço Nacional de Inteligência, o SNI, órgão que viria ser o baluarte do controle exercido pelas Forças Armadas à sociedade. A lei que criava o SNI indicava que o órgão tinha como prioridades:

 (...)subsidiar o presidente da República na orientação e coordenação das atividades de informação e contra-informações; estabelecer e assegurar os necessários entendimentos e ligações com os governos de estados, com entidades privadas e quando for o caso com as administrações municipais; proceder à coleta, avaliação, integração das informações em proveito das decisões do presidente da República e dos estudos do CSN; promover a difusão adequada das informações.

Incorporando todo o acervo e pessoal do Sfici, passou a ser o principal setor da atividade de informação no país. E viria a ser o principal em relação às outras segundas seções das secretarias das Forças Armadas.

Para tanto era preciso criar uma estrutura de formação de especialistas para abastecer esse mercado em ascensão. A 31 de março de 1971 foi criada a Escola Nacional de Informação (Esni). Sediada em Brasília, era o centro de formação de especialistas em inteligência para abastecer de pessoal capacitado todas as outras corporações do setor. A escola tem sua estrutura teórica e prática calcada na experiência de seu dirigente, o general Ênio, em cursos de especialização na CIA (Central Intelligence Angency) e no FBI (Federal Bureau of Investigation), ambas as agências estadunidenses que tratam de Informação e contra-informação.

A Esni, entre sua fundação e o final da década de 1970 formava cerca de 120 agentes por ano, sendo que destes ¾ foram civis. Números que corroboram para a tese de que a sociedade civil de certa forma não esteve totalmente distante da realidade militarista do Regime instituído no golpe de 1964 e se aprofundou após os idos do ano de 1968, com o AI-5 e seus desdobramentos.

            Outros centros de informação e contra-informação foram institucionalizados dentro das Forças Armadas. Aos poucos ia se conformando a estrutura que atribuiu tanto poder de controle social ao regime militar.

Em novembro de 1957 é criado o Centro de Informações da Marinha (Cenimar). Até 1968, quando se deu uma reforma em seus estatutos e atribuições pelo decreto lei n° 62.860, de 18 de junho do mesmo ano, o Cenimar tratava de questões relacionadas à diplomacia, controle de fronteiras e do pessoal da corporação; após 1968 é atribuída a Cenimar a responsabilidade de garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem, através do emprego do poder marítimo. Com tais deveres, durante o regime, o Cenimar angariou a alcunha de órgão mais eficiente daqueles dos setores de informação das Forças Armadas. Seus oficiais eram grandes especialistas nas varias esquerdas brasileiras; se especializou no PCB, onde se infiltraram cerca de quatro oficiais. Devido ao grande prestigio, após os serviços prestados para o Cenimar, os especialistas eram encaminhados para o SNI.

Jornal faz menção à Ato Institucional nº 5
A Aeronáutica também tratou de criar sua segunda seção já durante o regime. Em julho de 1968 o Núcleo de Serviço de Informações de Segurança da Aeronáutica (N-Sisa) aparece com uma doutrina essencialmente anti-comunista. Seu diretor fundador, o Brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, um “oficial mais radical do que a média” (Sócrates Monteiro, em entrevista ao Cpdoc, 1995), estudou Intelligence na Escola de Inteligência Militar em Fort Gullick, Panamá, na cidade de Balboa; Escola essa que recebeu muitos Latino Americanos formando-os em doutrina de combate ao comunismo internacional e nacional. O N-Sisa é forjado aos moldes do Cenimar e do Centro de Informações do Exército (CIE). Em 1970 é reformado e aparece com o nome de Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa), subordinado ao Ministério da Aeronáutica.

Finalmente analisaremos os mais ativos serviços de informação; aqueles que em nome do Estado infiltraram-se na sociedade angariando mais do que informações, mas um controle da mesma em vários âmbitos. Criado a 2 de maio de 1967 pelo decreto lei nº 60.664 em função do combate à subversão - a priori não pretendia interferir em outras questões - o Centro de Informações do Exército (CIE). É o organismo de informação com o maior número de pessoal e o que mais se empenhou no combate à luta armada do final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970. De acordo com o general Fiúza, primeiro chefe do CIE, foi formado essencialmente pelo antigo pessoal da segunda seção do Estado Maior do Exército (EME).

Ainda Dentro das instâncias do exército existiam dois setores que diziam respeito a segurança interna, os Destacamentos [destacamentos porque não possuíam estrutura detalhada e organização fixa] de Operações Internas (DOIs) e os Centros de Operações e Defesa Interna (Codis). Sob a direção do Ministro do Exército operavam em conjunto com as polícias Federais e Estaduais; os Codis e DOIs conduziam todas as questões relativas à repressão.

Os Codis eram os que tratavam da luta armada. Subordinados ao EME e não ao CIE, funcionavam com membros das três Forças Armadas. Os DOIs eram relativamente subordinados aos Codis, pois mantiveram um alto grau de autonomia, eram seus braços operacionais. Seu pessoal não andava fardado, usavam viaturas frias, normalmente carros apreendidos, e possuíam instalações próprias. Foram os encarregados das prisões e dos Interrogatórios, sendo que alguns agentes haviam feito cursos no Secret Intelligence Service (SIS), na Inglaterra. O general Fiúza diz sobre o DOI:

O DOI pega, guarda e interroga (...) Na captura, em geral, os chefes das diferentes turmas são tenentes, capitães, e a turma é constituída de sargentos. (...) O pessoal da captura não é o mesmo do interrogatório. (...) As informações eram repassadas à segunda seção do EME, onde 10 a 15 oficiais especialistas trabalhavam nisto. (...) No interrogatório, o interrogador tinha que ser um homem calmo, frio, inteligente e firme. (...) Havia sempre um superior lhe monitorando. (...) Quem caía ia para a planilha. (...) As pessoas podiam ficar 30 dias presas, sendo 10 dias de incomunicabilidade.

Já em 1968, com o AI-5, é oficializado o engajamento do governo e das Forças Armadas no combate à subversão. E então, num plano engenhoso, em 1970 todas as instâncias dos serviços de inteligência, informação, contra-informação, foram unidas pelo então General Presidente Médici num plano de diálogo e melhor funcionamento dos serviços chamado Sistema Nacional de Segurança Interna (Sissegint). Dando amparo jurídico à participação das inteligências das Forças Armadas, principalmente do SNI, da segunda seção do EME, dos DOIs e Codis, aqueles que “colocaram a mão na massa” no combate à subversão, resultando na série de atrocidades e excessos cometidos pelo regime.

É um aparato gigantesco, de amplo alcance, o forjado pelos dirigentes do Regime Militar brasileiro nos anos de 1970. Regulam todas as instancias do cotidiano. Os agentes além de se infiltrarem nos âmbitos políticos, como nas agremiações do PCB, no próprio MDB; adentram as esferas pessoais, religiosas, como a Igreja Católica, devido à atividade subversiva de seus bispos dom Hélder Câmara e dom Pedro Maria Casaldáliga; além de prender, torturar, extirpar informações a força; controlam não só as informações que são dadas, mas em muitos casos são os que regulam a produção, ou até mesmo produzem a informação para o público brasileiro. Alguns jornais de grande tiragem como o Folha da Manhã, o Folha da Tarde, eram em grande medida supervisionados, e tinham ate mesmo em seu corpo jornalístico agentes especiais. O Folha da Tarde “(...) era tido como ‘o de maior tiragem’, devido ao grande número de policiais que compunham sua redação no pós-AI-5. Muitos também a conheciam, por isso, como ‘a delegacia’.” (KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: entre jornalistas e censores. In: O golpe e a ditadura militar quarenta anos depois (1964-2004). Org. AARÃO REIS, Daniel, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá. 2004)

Como visto, todas as instâncias da sociedade sofreram investigação, influencia, ou conseqüências das práticas dos serviços de inteligência brasileiros no Regime Militar. Era grande sua esfera de poder e influencia, mas não se pode notar que grande parte do malefício, gerador do estigma de repressor que o regime angariou, veio do trabalho destes.

(...) houve toda aquela distorção conhecida da penetração do sistema [...] o que era inicialmente programado para fazer uma coleta de informações, análise de informações e produção de uma informação legitimada final se tornou intensa atividade operacional na busca ou participação dos eventos.” (Sócrates Monteiro, em entrevista ao Cpdoc, 1995).

Inicialmente com o intuito de observador social, as agencias de inteligência se tornaram agentes ativos, direcionando o regime; debelando movimentos entendidos como insurgentes, conformando o sistema a mando das autoridades das Forças Armadas, que no período se confundia com próprio governo, o Estado brasileiro.


Para saber mais:

ANTUNES, Priscila Carlos Brandão. SNI & ABIN: uma leitura da atuação dos serviços secretos brasileiros ao longo do século XX. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2002.

CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Jorge ZAHAR editor, 2005.

KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: entre jornalistas e censores. In: O golpe e a ditadura militar quarenta anos depois (1964-2004). Org. AARÃO REIS, Daniel, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá. 2004

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O Ofício das Sombras. In: Revista do Arquivo Público Mineiro, Ano XLII, nº 1, Janeiro-Junho, 2006.

A consciência histórica ocidental - esboço

A consciência histórica, a percepção existencial da história e sua conseqüente reflexão, é algo tão complexo quanto a vivencia humana. É disso, portanto, que será tratado nas linhas seguintes.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel
Diversos filósofos se encarregaram de pensar e repensar as possibilidades de operação e percepção da história, sua utilidade, relevância, objetividade, seu caráter científico ou artístico; em suma, tentavam definir quem ou o que é a história. Uma tarefa difícil, mas aceita por alguns. Foram inúmeros os que dissertaram sobre o assunto. Para um estudo da consciência histórica - ou da auto-percepção - do ocidente, escolho três autores, ao meu ver, essenciais: F. G. Hegel, F. Nietzsche, e P. Ricoeur.

Para uma introdução ao problema da consciência histórica, colocamos a questão de como ela é constituída. Para um dos nossos autores destacados, o filósofo Paul Ricoeur, a boa articulação e percepção da história é fruto de uma “mediação aberta, inacabada, imperfeita, a saber, uma trama de perspectivas cruzadas entre a expectativa do futuro, a recepção do passado, a vivencia do presente, sem Aufhebung numa totalidade em que a razão da história e sua efetividade coincidam” [1]; ou seja, a articulação, em um presente determinado, entre espaço-da-experiência com o horizonte-de-expectativa.[2] Entendamos melhor esses dois termos.

Reinhart Koselleck, historiador alemão, trás à luz um esclarecedor entendimento de experiência e expectativa, ambos necessários para discernir corretamente os significados de suas categorias históricas, definidoras de seu entendimento sobre a história. Primeiramente a experiência:

“Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou que não precisam mais estar presentes no conhecimento.Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é conservada uma experiência alheia.”[3]

Agora, a expectativa:

“(...) a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem.”[4]


São então a experiência e a expectativa os feitores da consciência de estar-no-tempo. A partir disso, a articulação da experiência desconfigurada é que define o que é o presente, e, é nesse presente onde se trama o passado e espera-se o futuro. Essa é a articulação que define o que foi a experiência passada, a experiência presente e o que será no futuro, a expectativa. É preciso, pois, definir as questões do tempo agora postas.

Na história, o tempo exerce um papel central. É ele o objeto do historiador, o passado. As aporias do tempo de Sto. Agostinho nos esclarecem bastante acerca do tema; especialmente no livro XI das “Confissões”. Agostinho nos relata as suas indagações sobre o tempo e expõe suas conclusões. Grosso modo, o tempo é um só: o presente, o que vivemos, ou, como diria Ricoeur, a experiência vivida. Nele, no presente, estão contidos todos outros “tempos”, o passado e o futuro. Temos então um presente do passado, um presente do presente, e um presente do futuro. É a tese do tríplice presente.

Porque é importante retomarmos as questões do tempo nesse momento? Para esclarecer que o espaço-da-experiência é o presente do presente e o presente do passado, enquanto o horizonte-de-expectativa é o presente do futuro. Assim, entendemos melhor as categorias de Koselleck. Para esse, e também para Ricoeur, a articulação é total no presente. Presente confuso e multiforme; de difícil, mas não impossível conformação. O entendimento do tempo é de importância crucial para o entendimento das categorias de Koselleck. A articulação do passado no presente, dos vestígios “que se conservaram até hoje, e que em maior ou menos número chegaram até nós” [5], é uma instrumentalização consciente do tempo – do objeto da história, o passado.

          Para o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, em sua obra “o Problema da Consciência Histórica”, essa forma consciente de se fazer história é a ambição sempre posta e buscada por filósofos e historiadores que começaram a se colocar essa questão já no séc. XIX. Gadamer enxerga a consciência histórica como sempre presente, mesmo implicitamente, nas discussões historiográficas e filosóficas; é “ao mesmo tempo, saber histórico e ser histórico” [6]; é a noção de história que temos em um certo momento do tempo; ela tem sua historicidade, tem suas variações.

          Somos hoje, ainda, “imprudentes em entender a produção historiográfica de [nosso] tempo como a melhor, porque é a que tem a melhor justiça” [7], disse Nietzsche. “Entendemos por consciência histórica o privilégio do homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião” [8], dis Gadamer, corroborando para a admoestação nietzcheana.

Friedrich Wilhelm Nietzsche
          É esse um sintoma atual das ciências humanas, a relativização, a falta de uma verdade, e o aparecimento de várias. Mas esse relativismo e aceitação de diversas formas de pensar, a não busca de um ponto único de pensamento, é a nossa consciência, a nossa verdade.

          A consciência moderna, essencialmente histórica, assume “uma posição reflexiva com relação a tudo que lhe é transmitido pela tradição” [9]. Os modernos, segundo Gadamer, põem às ciências humanas, em especial à história, um problema de filosofia. Essa reflexão sobre o fazer histórico, sobre o pensar o passado, sobre o estar-no-tempo, antes e no porvir. São reflexões árduas que fizeram da história um pântano difícil de caminhar durante seu processo de definição como matéria científica.

          Gadamer em todo seu texto se aproxima de Ricoeur, seja em sua teoria sobre a compreensão do passado - mediação entre passado e presente em um círculo hermenêutico -, ou enxergando a consciência histórica como “a via que nos foi dada para chegarmos à verdade sempre buscada” [10]. A percepção do ser-no-tempo é o triunfo da consciência da realidade. É a eficiência da história que se refigura a partir de seu tempo, sua experiência própria, na qual o ser-no-tempo é agente consciente do processo em que está inserido. Em toda obra, Gadamer e Ricoeur não dialogam explicitamente, mas são parceiros em termos de visão filosófica sobre o tempo histórico.

          Distanciando um pouco das reflexões mais atuais sobre o tema, irei retomar alguns pensadores para ilustrar as principais propostas realizadas ao mundo ocidental. Esses projetos foram definidores de muitos outros, colaboradores em grande medida para a conformação do ocidente europeizado; projetos de um mundo judaico-cristão, ou, das subversões criadoras do seu avesso. Destrincharei e tentarei deixar mais claras tais idéias, a seguir.

          Hegel é um defensor de uma História-Verdade, aquela detentora de poder e glória, onde reside o grande homem histórico, o herói. Esses ditos homens históricos, os heróis de Hegel, “são aqueles que apreendem uma proposição universal [do Espírito do Mundo], fazem-na seu objetivo e realizam esse objetivo em conformidade com a lei mais elevada do espírito”[11]. É um ardoroso cristão, e, dessa formação, não escapará sua filosofia. O mundo de Hegel é governado pela razão, razão essa que governa tudo de forma lógica; universal e perfeita, encarnada no espírito da História.

          O tempo para Hegel é o futuro. O passado é para ser lembrado, e observado apenas; o presente é guiado pelo “espírito”, pela História, que se confunde com o próprio Deus. Cabe então ao historiador, consciente disso, “aprender a conhecer o espírito, sua vontade racional necessária, em sua unção orientadora” [12]. Assim, conformar-se da melhor forma na lógica que o Espírito outorga. Essa é a única forma de estar-no-tempo consciente, na história hegeliana. Tudo conflui para a concretização e realização da razão. O espaço-da-experiência é determinado pela razão; o horizonte-de-expectativa é guiado pelo Espírito; logo, não há problema de consciência histórica - o ser deve apenas saber dessa lógica e se sentir livre - e sim, um problema de ação na história, que perde seu caráter humano.

          F. Nietzsche é avesso a História-Verdade de Hegel. Pensa ele ser uma definição voltada para um universal definidor de um grande homem histórico, um herói, o qual apreende o Espírito e faz de si instrumento realizador da razão, ou vontade de Deus. Para Nietzsche esse destino-guia é a religião dos fracos. Ele é um defensor do homem e sua natureza; a história, entendida como tradição, não oferece mais do que um peso, uma culpa a ser carregada. O homem nietzscheano deve se ver livre de tal peso, e viver sua natureza, entendida como a totalidade do seu potencial no presente.

          O homem moderno, de fins do séc. XIX, “prepara constantemente a festa de uma exposição universal através de seus artistas históricos” [13], diz Nietzsche. Ele é um fervoroso combatente dessa “festa” do progresso, acreditando ser mais uma “festa” do vil homem moderno, preso às tradições, carregado de impulsos contidos, cheios de vontade de potência malogrados; cenário esse imposto pela maior das tradições sedimentadas no mundo ocidental, o cristianismo.

          Esse querer moral, de livrar o homem de seus grilhões da tradição, requer uma revolução no pensar histórico que faria do espaço-da-experiência a sua vivência única. Não devemos nada ao passado, porque “aquele que pede conselho a história é pusilânime”[14]; a história  deve servir a vida, não nos aprisionar nela. Em Nietzche, não adentraremos à paruzia[15] num futuro conhecido.

          Nietzsche vê o excesso de história de seu tempo como uma doença que aprisiona os homens em uma observação demasiada obsessiva da cultura, em detrimento do “experimentar a vida”. O homem deve aprender a ser livre. Ser livre para Nietzsche não é seguir a Marcha da História alocando-se da melhor forma em seus padrões pré-determinados pelo destino, mas sim liberar sua vontade de potência, seu ser real, desprovido de construções culturais limitadoras, do peso do passado. É a “reivindicação do a-histórico” [16].

Paul Ricoeur
          O mais contemporâneo dos três, Paul Ricoeur, foi bem sucedido na difícil tarefa de contrapor a visão fatalista da história de Nietzsche, que no século XX, foi propulsora da desconstrução da história ciência. A consciência histórica então vigente foi abalada e não se colocaram soluções até Ricoeur. Um pouco de sua tese já foi apresentada, vejamos um pouco de sua visão sobre a consciência do ser-no-tempo, ligada as categorias de Koselleck.

          O filósofo francês coloca o homem novamente na história, agente vivente, feitor e significador da mesma. Voltando a citação feita na introdução deste trabalho, Ricoeur elucida que após as concepções de Hegel, fechada em si mesma, de Nietzsche, sem ponto de partida ou de chegada numa desconstrução de certa forma inconseqüente da sociedade, poderia existir uma conciliação entre o passado e o presente. O horizonte-de-expectativa é delineado pelo espaço-da-experiência, em um ciclo hermenêutico, criador de representações construtivas das experiências vividas.

          A história tem novamente seu lugar; o homem, no presente, é “afetado pela história” em Ricoeur. No presente estão contidos futuro e passado. O passado foi presente, o futuro será presente. Tanto o passado quanto o futuro são construções do agora, e, quando existiram, ou passarem a existir, serão presente. Logo, é no presente que vivenciamos nossa experiência. Configuramos tal experiência como memória do agora, chamada posteriormente de passado; configuramos também nossas expectativas no agora. Tais configurações serão refiguradas, dando vida ao ciclo hermenêutico ricoeuriano e sua história aberta, inacabada, constantemente repensada. A verdade relativista de nosso tempo.

          Por fim, todos autores citados têm em comum o fato de não se distanciarem da lógica Judaico-cristã de mundo. Os três, diga-se de passagem, com formação teológica protestante. Vejamos: Hegel, um explícito cristão em suas teses; Nietzsche, ardoroso crítico da cristandade, não perde seu querer de busca pela boa sociedade, creditando ao solução ao homem e seu potencial - apesar dessa se realizar no agora, no presente, não num futuro pós apocalíptico; Ricoeur, herdeiro das concepções temporais de Sto. Agostinho, norteia sua teoria da história por concepções cristãs de mundo. Questões e serem debatidas com maior profundidade em outro momento.

          Esse aspecto não pode ser relegado à segundo plano para o entendimento da história da consciência ocidental, sua auto-percepção enquanto ser-no-tempo; o que fazer e como agir em relação ao outro e a si mesmo. As concepções originais ainda são as mesmas, e uma ruptura completa não pôde ser averiguada. É a tese de Ricoeur em andamento, um autor é a refiguração do outro, numa espiral hermenêutica ainda incompleta. São problemas que se colocaram desde a fundação da pratica reflexiva, e que tomam uma direção específica em fins do séc. XIX. Esses problemas de filosofia, nas palavras de Gadamer, é o desafio da atual historiografia, questionar os mecanismos e lógicas da história, sua função e seu poder.


[1] RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. Volume 3. p. 359

[2] Categorias meta-históricas(para além do estudo da história) utilizadas por Reinhart Koselleck em seu trabalho “Futuro e Passado”, as quais serão discutidas adiante.

[3] KOSELLECK, R. Espaço de Experiência e Horizonte de expectativa: duas categorias históricas. RJ: Contraponto/PU[C]-RJ, 2006. p. 309

[4] Ibid. p. 310

[5] Ibid. p. 305

[6] GADAMER, H[-G]. O problema da Consciência Histórica. RJ: FGV. P. 58

[7] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm,. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 51

[8] Ibid. p. 17

[9] Ibid. p. 18

[10] Ibid. p. 71

[11] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich,. A Razão na historia: uma introdução geral a filosofia da historia. 2.ed. São Paulo: Centauro, 2001.

[12] Ibid.

[13] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm,. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 41

[14] Ibid. p.45

[15] Referência ao fim dos tempos cristão, a glória ou presença de Deus.

[16] RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. Volume 3. p. 405