terça-feira, 19 de outubro de 2010

Reflexões sobre filosofia e história da história

O movimento da história da história é constante. Ininterruptamente questionada, a historia não permanece imutável em seus métodos e em seu entendimento como matéria. Pensar como o fazer e refazer a história acontece, ou deve acontecer, é marca da filosofia da historia: uma reflexão sobre a articulação do passado, seus perigos, problemas, seus porquês e desafios.

            Para a filosofia da historia vivemos um período conturbado, momento de mudanças nas estruturas do tecer histórico. Alguns sustentáculos, como o estatuto científico da historia, foram colocados em xeque; reflete-se sobre o que realmente a historia é; a historia é literatura, ciência, um pouco dos dois? O passado, um mistério, uma abstração, pode ser objeto de pesquisa cientifica? São questionamentos profundos que abalam o meio acadêmico e incomodaram mentes atentas aos problemas filosóficos e epistemológicos que se colocavam, e se colocam, nos artigos e escritos interessados em definir respostas ou mesmo nortes para tais problemas.

            Primeiramente entendamos o momento em que surgem os questionamentos chave da crise do pensar histórico pós-modernista. Num contexto de pensadores estruturalistas, perseguidores de lógicas universais, estruturas guias de uma evolução dos rumos da história, surgem alguns para romper com tais idéias. Com uma lógica de pluralidade de pensamentos, entendimentos, pontos de vista, comportamentos, culturas, os chamados pós-estruturalistas se enveredam num embate intelectual para fazer frente à dureza historicista, positivista, ainda remanescente no pensar e fazer histórico.

O questionamento das fontes, que para os positivistas era como a própria historia esperando para ser encontrada e escrita, é uma de suas propostas. “Os documento históricos não são menos opacos do que os textos estudados pelo crítico literário. Tampouco é mais acessível o mundo figurado por esses documentos. Um não é mais ‘dado’ que o outro. De fato, a opacidade do mundo figurada nos documentos históricos é, se é licito falar de opacidade, aumentada pela produção das narrativas históricas.”[1]As fontes devem ser destrinchadas, interpretadas, correlacionadas, elas mesmas foram frutos de interpretação, pensamento colaborador de sua lógica de pluralidade cultural, de pontos de vista, de fazeres históricos.

Grosso modo, todo o pensamento pós-estruturalista quebra a existência de uma verdade a ser perseguida; existem verdades, várias, tantas e tão complexas quanto quem as produz, os atores sociais históricos, os seres. “A historia anda na contramão da filosofia, da ciência, da religião, e do senso comum, que procuram uma verdade fora do tempo e protegem seus resultados com enorme cuidado.”[2] A história produz e reproduz verdades no tempo, não uma única, mas muitas, esse é o entendimento do fazer histórico pós-moderno.

            Ao quebrar o paradigma da verdade histórica os pós-estruturalistas têm em frente vários problemas: se a história não trata de encontrar uma verdade, o que ela encontra? Uma mentira? Para Hayden White as narrativas históricas são “ficções verbais”, sendo assim mais equivalentes à literatura do que com seus correspondentes nas ciências humanas. Surge a tese da história-literatura, e, por conseguinte, uma discussão intensa sobre a proposição de White; a história tem um elemento fictício e os historiadores ganhariam reconhecendo tal elemento. Os acontecimentos são neutros e o historiador apenas atribui através de uma estrutura de enredo uma verdade para um ocorrido, o objeto da dissertação. Para ele, isso “(...) serviria de antídoto eficaz para a tendência dos historiadores de apegar-se a preconceitos ideológicos (...)”; o historiador teria uma consciência maior de seu tecer histórico como relativo, assim como propõem os pós-estruturalistas. Mas a história então não fala de algo real? Os textos históricos são todos frutos de um delírio da mente de um hábil escritor romancista, cronista?

            O historiador e filósofo francês Paul Ricoeur aprofunda as idéia de Hayden White, vai além de estabelecer a imaginação literária como relativista de uma verdade histórica e recoloca a história como ciência interessada em tratar das experiências vividas. Ricoeur lembra que a linguagem é hermenêutica, suscetível a interpretações diferentes; o que gera histórias, verdades diferentes além do alcance e controle dos feitores dessas histórias. Ricoeur estabelece três etapas para entender o pensar, o fazer e a recepção de uma história: primeiro se pré-configura, se vive uma experiência, uma ação, um momento ou mundo já repleto de linguagem e culturas. Após viver uma experiência se configura, se compila em forma de linguagem inteligível o acontecido, combinando o “cronológico ao lógico” elabora-se a narrativa; todas, construções não autônomas, mas sim referentes ao vivido. Ao final a narrativa é recebida por alguém, fazendo a obra acontecer, um sentido é atribuído à ela; é a reconfiguração, tendo o texto como mediador entre o leitor e a realidade, a experiência vivida do autor, revisitada pela experiência do leitor.

            Fruto desse debate surge uma tese extremamente relevante do historiador e antropólogo italiano Carlo Ginzburg. Num texto tratando da evolução de um paradigma indiciário – existente na antiguidade, apagado pelo paradigma galilaico em busca de uma lógica universal, e ressurgido nos fins do séc. XIX – C. Ginzburg associa tal paradigma ao fazer histórico; o que o historiador deve entender como seu método de conformação de um passado já inexistente, intangível para averiguação.

A tese de Ginzburg é a de que assim como a psiquiatria eminente dos fins do XIX, como um Sherlock Holmes, o historiador deve ter “(...) por hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco notados ou despercebidos, dos detritos ou ‘refugos’ da nossa observação.”[3] Esses elementos pouco notados são os vestígios, os indícios do que foi o passado perseguido pala imaginação do historiador.  Ainda diz mais, chamando atenção a “(...) proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores.”[4] Ginzburg lança mão de uma busca específica sobre indivíduos, momentos específicos, sociedades ou grupos específicos para o entendimento detalhado e preciso dos mesmos; um olhar micro, mais detalhado para evitar as generalizações e impertinências dos estruturalistas; a chamada micro história.

Ginzburg não evita H. White, afirma que “o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural”, ou seja, uma construção á posteriori. De acordo com P. Ricoeur uma configuração de um vivido que será reconfigurado por diversos leitores devido à propriedade hermenêutica da linguagem. Além disso, Ginzburg reforça a tese de Ricour, partidário de uma história-ciência, concordando com White sobre a história como retórica. Mas lembra, “a retórica não exclui a prova”, a estruturação lingüística de algo pressupõe provas, experiências vividas como sustentação da narrativa. Os historiadores produzem uma “avaliação provada do passado”.

            Muitas são as teses que instituem problemas e propõem soluções para a crise epistemológica da historia pós-estruturalista. Há um problema que está além dos limites do refletir metodológico da história, alcançando à ética, um porque ou utilidade do fazer história. A filosofia da história se ocupa de tratar também dessas questões. Pensadores como Norbert Elias, Michel Foucault, Roger Chartier, são exemplos de semeadores da auto-reflexão sobre a utilidade da história, o poder dos discursos; admoestam sobre o momento histórico o qual estamos inseridos e não damos devida atenção, ou não despertamos a consciência para observar em que nicho de pensamentos ou praticas estamos.

Para N. Elias estamos envoltos em um processo civilizador, algo que “aconteceu, de maneira geral, sem planejamento algum, mas nem por isso sem um tipo de ordem.”[5] Processo esse que “constitui uma mudança na conduta e sentimentos humanos rumo a uma direção muito especifica.”[6] O autocontrole, a supressão das pulsões e paixões humanas é a direção final e o próprio processo de acordo com Elias. Tal processo tem inicio nas cortes modernas francesas, a vanguarda da civilité; é recente e tem como locus inicial a Europa moderna, espalhando-se pelo mundo devido à extensa teia de relacionamentos criada pela expansão cultural e comercial engendrada pela Europa nesse período. A necessidade de sincronização das condutas faz a Europa exportar a civilização, gerando um movimento de tendência generalizante do processo à todos os cantões do globo.

Vivemos então num mundo onde a sociedade foi conduzida por um movimento inconsciente de civilização, movimento de supressão das violências individuais. Mundo esse que entregou o monopólio da violência e desígnios de punição a uma instituição, o Estado moderno. As questões de justiça, de sociabilidade, não são mais resolvidas individuo a individuo, mas sim são delegadas ao Estado e suas instituições competentes. É um mundo onde as batalhas antes resolvidas instigadas pelos sentimentos expressos, sejam pela violência física ou verbal, agora são transportadas para o interior do individuo, que deixa a cargo de “outro”, no caso o Estado, resolve-las. Elias afirma ainda que a “‘tendência’ do movimento da civilização é em toda parte a mesma”, estamos então num mundo em processo de civilização.

            Outra análise bastante pertinente é a de M. Foucault. O filósofo e historiador francês anima as discussões sobre verdade histórica, processos sociais, porquês do estudo histórico e o poder dos discursos. Voltando à discussão sobre verdade histórica, para Foucault existem regimes de verdade, momentos e locais em que uma verdade existe, mas logo deixa de existir dando lugar a outra. No intervalo das duas idéias existe uma luta, um dialogo combativo necessário e configurador de um novo regime de verdade. “Por ‘verdade’, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e funcionamento dos enunciados. A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem.”[7] Existe uma continua descontinuidade na história para Foucault, e é a essa descontinuidade que ele atribui os ‘regimes’ de verdade. Esses regimes se embatem devido as constantes relações de forças, de poder a que são submetidas as questões sociais, humanas. Mas para o filosofo e historiador M. Foucault “nem a dialética (como lógica de contradição), nem a semiótica (como estrutura da comunicação) não poderiam dar conta do que  é a inteligibilidade intrínseca dos confrontos”[8], deve-se elucidar que a “historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não lingüística. Relação de poder, não de sentido.”[9] Os historiadores são aqueles que identificam os momentos de tensão, os regimes de verdade, os regimes de poder, e criam configurações discursivas sobre as verdades, que no pensamento de Foucault, não existe sem o poder.

            As teses de M. Foucault e N. Elias são de certa forma estruturalizantes, tentam englobar a historia em algum tipo de lógica para se pensar o agora, o momento histórico vivido. Roger Chartier é mais direto e trata do agora, o que ele chama de momento pós-89, após a queda do muro de Berlim, um marco do processo de falência do império soviético. Para Chartier o sonho revolucionário socialista norteou muitas mudanças sociais, mudanças estruturais, e a própria historiografia. O marxismo foi dominante no séc. XX, com suas análises reveladoras de um querer revolucionário. Após a falência soviética o Marxismo, assim como a historiografia marxista, caiu em desuso por sua suposta derrota para o projeto capitalista. O momento então é de uma ausência de sonho, de projeto alternativo, de norte para engendrar uma literatura histórica engajada pela resolução dos problemas que não findaram nas sociedades do planeta. Para Chartier vive-se a alegria do presente, e ai reside o problema: não existe algo que instigue um olhar para o passado, ele está desinteressante.

O historiador Frank Ankersmit alerta para esses problemas. A falta de projetos, direcionamentos para a historiografia pós-moderna, ou pós-89, faz a escrita histórica ser além de plural e infinita em possibilidades devido ao discurso forte dos pós-estruturalistas. Passa também a ser uma mera performance plástica para tratar de temas que atendam as necessidades de um mercado. O mercado se impõe sobre as reais necessidades da sociedade e suas problemáticas são negligenciadas devido às questões já tratadas pelo pensamento de Roger Chartier.

É um momento estranho para a história. Momento de auto-reflexão e de mudanças. Auto-reflexão fruto das questões pós-estruturalistas, algumas ainda não completamente respondidas. O mundo pós-89 carece de saídas para o labirinto imposto pelo ‘regime’ de verdade vigente, se apropriando de M. Foucault. Mas a historiografia percebeu que a busca por um Deus, um lógica regente, um sentido para a história, não permite alcançar a amplitude de um passado misterioso. Ele é possível de se buscar pelos seus vestígios, indícios, complexos e reais. É o momento dos pensadores, historiadores, filósofos da historia reavaliar as intenções práticas dos usos da história e reaprenderem a enxergar o fazer historia. Enxergar o mundo de novas formas criando discursos originais, um novo mundo.



[1] WHITE, Hayden V.. Tropicos do discurso: ensaios sobre a critica da cultura. 2.ed. São Paulo: EDUSP.

[2] REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: FGV.

[3] FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infancia; O Moises de Michelangelo.

[4] GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e historia. São Paulo: Companhia das Letras.

[5] ELIAS, Norbert. O processo civilizador. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

[6] Ibid.

[7] FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. Rio de Janeiro: GRAAL

[8] Ibib.

[9] Ibid.

Ver também:
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. Volume 1.
_____________. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. Volume 3.

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