terça-feira, 19 de outubro de 2010

Judaismos na filosofia de Walter Benjamin

Walter Benjamin estudando em biblioteca
Benjamin, além da formação teológico-judaica, buscou uma formação marxista. Essa faceta benjaminiana foi a mais explorada, estudada na academia. Comentaristas do marxismo não pouparam esforços em desdobrar suas teorias em uma expressão singular, nova, do materialismo-dialético[i]. No entanto, sem anular a parcela marxiana em sua obra, seus judaísmos têm sido repensados pela historiografia recente.

A questão da linguagem benjaminiana é bastante pertinente. Sua escrita, pela forma, pelo trato, tipo de assunto, é, no que tange a teologia, enigmática. Benjamin utiliza as palavras, messiânico, messias, divino, paraíso, junto a expressões como política, história, experiência. Devido a isso, ao fato de produzir um texto de estética e assunto enigmático, sua obra é aberta. Como historiador, como filósofo, teólogo, como crítico literário, como artista, Walter Benjamin pode ser lido e decifrado[ii]. Alguns de seus escritos são como grandes aforismos, por vezes mais próximo da poesia do que da filosofia. Os aforismos dariam um bom sentido aos seus postulados, expressando de forma menos objetiva, ou seja, mais completa[iii], o íntimo de seu intelecto por vezes complexo.

Esse seu sincretismo lingüístico é explorado por Ugo Perone no artigo Walter Benjamin: modernidade e revolução[iv]. Perone promove um esboço de mediação entre o marxismo e a filosofia judaica. O tempo da revolução é o que Benjamin chama de tempo messiânico, no qual a humanidade irá se redimir do julgo de uma história arruinada.

Além da forma como Benjamin instrumentaliza a linguagem, pode-se observar a importância que o mesmo da à ela como criadora. Para efeito de exemplo, introduzo a seguinte máxima judaica: Da mesma forma que Deus cria, o homem, por Ele, foi criado para criar.

Assim, na leitura benjaminiana de Gênese 2:20, a língua adâmica responde ao verbo criador de Deus quando ela dá um nome aos animais; ao reconhecer o objeto como criado, ela o conhece na sua essência imediata. Por isso os nomes adâmicos só dizem de si, isto é, já do objeto na sua plenitude. A “queda” é a perda dolorosa desta imediaticidade, perda que se manifesta, no plano lingüístico, por uma espécie de “sobredenominação” (uberbenennung), uma mediação infinita do conhecimento que nunca chega ao seu fim.[v]

Deus, pela interpretação judaica, espera que o homem crie, melhore o mundo[vi], pela ação, pelo dom dado ao homem na gênese do tempo divino, o dom da linguagem[vii]. A vida como foi criada é “boa”, mas não perfeita. Pelo poder criador conferido ao ser humano, ele deve aperfeiçoar esse mundo, que jaz em ruínas, segundo Benjamin. A idéia messiânica[viii], de uma volta ao éden criativo – retorno a natureza adâmica e seu potencial criador – , pode ter sua origem nessa postura, essa percepção profética do fim; a consciência de que vivemos uma história arruinada, e que o mashiach[ix], ao chegar, em seu tempo, interrompe a história. Ele revoluciona, e, do ein-sof[x], erige a história novamente. Seria Benjamin um otimista, a espera do momento messiânico redentor. Poderia assim a metáfora messiânica ser objetivamente interpretada, o mashiach como um momento, uma expectativa de futuro[xi].

O tempo, objeto impalpável dos estudos históricos, também é tratado em sua obra. A medida teológica na sua concepção é crucial para o seu entendimento. Dialogando com Hegel, Deus é a própria história[xii] em Benjamin, mas é como HaShem[xiii]: o é de forma plástica e não progressista como em Hegel. O tempo é o que foi, o que é, o que será: o passado, o presente e o futuro. Logo, dentro da esfera tradicional teológica temos uma concepção vanguardista, por seu caráter metafórico, não literal da figura do Adonai[xiv] dos judeus, como o tempo, como a história.

Ainda na discussão sobre o tempo, no final das teses Sobre o conceito de História, é delineada a questão da consulta ao passado e da consulta ao futuro. Benjamin nos lembra que a Torah[xv] admoesta aos judeus a não consultarem o futuro, mas incentiva a rememoração do passado. Dessa forma, o historiador, assim como os observantes da Torah, deve se ocupar do passado, articulado no presente. Não deve se preocupar com o futuro, pertencente ao Mashiach, ao tempo certo da revolução[xvi], que para Benjamin é inevitável. Também, devido à capacidade criativa do homem, o futuro não pode ser esboçado, previsto.

Nem marxista ortodoxo, nem judeu ashkenazita tradicional[xvii], Benjamin era um homem de identidade fragmentada, escrevia e se expressava acerca de seu mundo, não importando a matéria; um prospecto do homem do século XXI com a alma de um literato da modernidade. Participe de cultura religiosa e política, a principio discordantes – judaísmo e marxismo –, tratou de aliciar uma a serviço da outra. Ora teólogo, ora historiador e político, ora “teólogo-político”, parecia ter como mitzvah[xviii] viver para criar a conciliação mal vista pelos acadêmicos, entre a filosofia, a política e a teologia. Conhecimentos que Walter Benjamin lograria em sua obra serem complementos necessários um do outro.




[i] Ver KONDER, Leandro. Benjamin e o marxismo. Alea, Dez 2003, vol.5, no.2, p.165-174.

[ii] Ver FUNARI, Pedro Paulo. Considerações em torno das “Teses sobre filosofia da  História” de Walter Benjamin. Revista Crítica Marxista, Unicamp - SP, Nº 3, 1996. Disponível em: http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/3_PPFunari.pdf, acessado em 23/08/2010. ), Funari observa que Benjamin se exprime “através de recursos não acadêmicos e, até mesmo, extragramaticais, como o uso de imagens (...)” com um  “estilo do texto, fortemente estético, entremeado de citações poéticas e pictóricas, constrói-se, também, com essa imagética, como, em particular, nas analogias e metáforas”.

[iii] Como suas proposições são por vezes demasiadamente vagas, as possibilidades de interpretação aumentam, tornando sua obra pertinente a diversas situações, também por esse motivo.

[iv] Ver PERONE, Ugo. Walter Benjamin: Modernidade e Redenção. PENZO, Giorgio; GIBELLINI, Rosino. Deus na filosofia do Século XX. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2000. p. 323.

[v] Ver GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 17-18.

[vi] Ver GILLMAN, Neil. Fragmentos sagrados. Comunidade Shalom.

[vii] Gen. 2: 19,20

[viii] Introduzo aqui uma interpretação minha a respeito do entendimento de messianismo na obra de Benjamin. O Mashiach judaico, remete a um tempo futuro, ainda não concretizado, um tempo em que haverá um novo homem: um homem com consciência criativa, de seu papel histórico.

[ix] Messias dos judeus, que ainda está por vir em um tempo futuro e misterioso.

[x] O nada místico da Kabbalah. A partir dele surgem os 10 atributos ou emanações divinas, as 10 Sefirot.

[xi] Ver KOSELLECK, Reinhart; MAAS, Wilma Patricia Marzari Dinardo; PEREIRA, Carlos Almeida. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio : Contraponto, 2006.

[xii] Ver HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich,. A Razão na historia: uma introdução geral a filosofia da historia. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2001. p. 21.

[xiii] “O Eterno”, em hebraico. Alem de Adonai, Senhor, é um dos nomes de Deus na Bíblia Hebraica. O intuito é chamar a atenção para o fato de um de HaShem ser um atributo temporal, o eterno: passado, presente e futuro contidos em um só ser.

[xiv] “Senhor”, em hebraico. Um dos Nomes de Deus na Bíblia hebraica.

[xv] O objeto mais sagrado do judaísmo, as escrituras dadas a Moises no Sinai (pela tradição). Equivale ao Pentateuco presente na Bíblia cristã.

[xvi] Essa revolução que ocorrerá em um futuro próximo seria, nos seus termos marxianos, um inevitável movimento da história para Benjamin. Para expressar esse postulado Walter Benjamin utiliza uma metáfora messiânica, onde o messias incorpora a Revolução de Karl Marx.

[xvii] Ashkenazi é o judeu oriundo da Europa central; aparece em referencias em torno do século X d.c. Também é o nome dado a essa região, em hebraico medieval.

[xviii] Palavra hebraica para designar a Lei, as observâncias que um judeu deve seguir.

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