quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A consciência histórica ocidental - esboço

A consciência histórica, a percepção existencial da história e sua conseqüente reflexão, é algo tão complexo quanto a vivencia humana. É disso, portanto, que será tratado nas linhas seguintes.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel
Diversos filósofos se encarregaram de pensar e repensar as possibilidades de operação e percepção da história, sua utilidade, relevância, objetividade, seu caráter científico ou artístico; em suma, tentavam definir quem ou o que é a história. Uma tarefa difícil, mas aceita por alguns. Foram inúmeros os que dissertaram sobre o assunto. Para um estudo da consciência histórica - ou da auto-percepção - do ocidente, escolho três autores, ao meu ver, essenciais: F. G. Hegel, F. Nietzsche, e P. Ricoeur.

Para uma introdução ao problema da consciência histórica, colocamos a questão de como ela é constituída. Para um dos nossos autores destacados, o filósofo Paul Ricoeur, a boa articulação e percepção da história é fruto de uma “mediação aberta, inacabada, imperfeita, a saber, uma trama de perspectivas cruzadas entre a expectativa do futuro, a recepção do passado, a vivencia do presente, sem Aufhebung numa totalidade em que a razão da história e sua efetividade coincidam” [1]; ou seja, a articulação, em um presente determinado, entre espaço-da-experiência com o horizonte-de-expectativa.[2] Entendamos melhor esses dois termos.

Reinhart Koselleck, historiador alemão, trás à luz um esclarecedor entendimento de experiência e expectativa, ambos necessários para discernir corretamente os significados de suas categorias históricas, definidoras de seu entendimento sobre a história. Primeiramente a experiência:

“Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou que não precisam mais estar presentes no conhecimento.Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é conservada uma experiência alheia.”[3]

Agora, a expectativa:

“(...) a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem.”[4]


São então a experiência e a expectativa os feitores da consciência de estar-no-tempo. A partir disso, a articulação da experiência desconfigurada é que define o que é o presente, e, é nesse presente onde se trama o passado e espera-se o futuro. Essa é a articulação que define o que foi a experiência passada, a experiência presente e o que será no futuro, a expectativa. É preciso, pois, definir as questões do tempo agora postas.

Na história, o tempo exerce um papel central. É ele o objeto do historiador, o passado. As aporias do tempo de Sto. Agostinho nos esclarecem bastante acerca do tema; especialmente no livro XI das “Confissões”. Agostinho nos relata as suas indagações sobre o tempo e expõe suas conclusões. Grosso modo, o tempo é um só: o presente, o que vivemos, ou, como diria Ricoeur, a experiência vivida. Nele, no presente, estão contidos todos outros “tempos”, o passado e o futuro. Temos então um presente do passado, um presente do presente, e um presente do futuro. É a tese do tríplice presente.

Porque é importante retomarmos as questões do tempo nesse momento? Para esclarecer que o espaço-da-experiência é o presente do presente e o presente do passado, enquanto o horizonte-de-expectativa é o presente do futuro. Assim, entendemos melhor as categorias de Koselleck. Para esse, e também para Ricoeur, a articulação é total no presente. Presente confuso e multiforme; de difícil, mas não impossível conformação. O entendimento do tempo é de importância crucial para o entendimento das categorias de Koselleck. A articulação do passado no presente, dos vestígios “que se conservaram até hoje, e que em maior ou menos número chegaram até nós” [5], é uma instrumentalização consciente do tempo – do objeto da história, o passado.

          Para o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, em sua obra “o Problema da Consciência Histórica”, essa forma consciente de se fazer história é a ambição sempre posta e buscada por filósofos e historiadores que começaram a se colocar essa questão já no séc. XIX. Gadamer enxerga a consciência histórica como sempre presente, mesmo implicitamente, nas discussões historiográficas e filosóficas; é “ao mesmo tempo, saber histórico e ser histórico” [6]; é a noção de história que temos em um certo momento do tempo; ela tem sua historicidade, tem suas variações.

          Somos hoje, ainda, “imprudentes em entender a produção historiográfica de [nosso] tempo como a melhor, porque é a que tem a melhor justiça” [7], disse Nietzsche. “Entendemos por consciência histórica o privilégio do homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião” [8], dis Gadamer, corroborando para a admoestação nietzcheana.

Friedrich Wilhelm Nietzsche
          É esse um sintoma atual das ciências humanas, a relativização, a falta de uma verdade, e o aparecimento de várias. Mas esse relativismo e aceitação de diversas formas de pensar, a não busca de um ponto único de pensamento, é a nossa consciência, a nossa verdade.

          A consciência moderna, essencialmente histórica, assume “uma posição reflexiva com relação a tudo que lhe é transmitido pela tradição” [9]. Os modernos, segundo Gadamer, põem às ciências humanas, em especial à história, um problema de filosofia. Essa reflexão sobre o fazer histórico, sobre o pensar o passado, sobre o estar-no-tempo, antes e no porvir. São reflexões árduas que fizeram da história um pântano difícil de caminhar durante seu processo de definição como matéria científica.

          Gadamer em todo seu texto se aproxima de Ricoeur, seja em sua teoria sobre a compreensão do passado - mediação entre passado e presente em um círculo hermenêutico -, ou enxergando a consciência histórica como “a via que nos foi dada para chegarmos à verdade sempre buscada” [10]. A percepção do ser-no-tempo é o triunfo da consciência da realidade. É a eficiência da história que se refigura a partir de seu tempo, sua experiência própria, na qual o ser-no-tempo é agente consciente do processo em que está inserido. Em toda obra, Gadamer e Ricoeur não dialogam explicitamente, mas são parceiros em termos de visão filosófica sobre o tempo histórico.

          Distanciando um pouco das reflexões mais atuais sobre o tema, irei retomar alguns pensadores para ilustrar as principais propostas realizadas ao mundo ocidental. Esses projetos foram definidores de muitos outros, colaboradores em grande medida para a conformação do ocidente europeizado; projetos de um mundo judaico-cristão, ou, das subversões criadoras do seu avesso. Destrincharei e tentarei deixar mais claras tais idéias, a seguir.

          Hegel é um defensor de uma História-Verdade, aquela detentora de poder e glória, onde reside o grande homem histórico, o herói. Esses ditos homens históricos, os heróis de Hegel, “são aqueles que apreendem uma proposição universal [do Espírito do Mundo], fazem-na seu objetivo e realizam esse objetivo em conformidade com a lei mais elevada do espírito”[11]. É um ardoroso cristão, e, dessa formação, não escapará sua filosofia. O mundo de Hegel é governado pela razão, razão essa que governa tudo de forma lógica; universal e perfeita, encarnada no espírito da História.

          O tempo para Hegel é o futuro. O passado é para ser lembrado, e observado apenas; o presente é guiado pelo “espírito”, pela História, que se confunde com o próprio Deus. Cabe então ao historiador, consciente disso, “aprender a conhecer o espírito, sua vontade racional necessária, em sua unção orientadora” [12]. Assim, conformar-se da melhor forma na lógica que o Espírito outorga. Essa é a única forma de estar-no-tempo consciente, na história hegeliana. Tudo conflui para a concretização e realização da razão. O espaço-da-experiência é determinado pela razão; o horizonte-de-expectativa é guiado pelo Espírito; logo, não há problema de consciência histórica - o ser deve apenas saber dessa lógica e se sentir livre - e sim, um problema de ação na história, que perde seu caráter humano.

          F. Nietzsche é avesso a História-Verdade de Hegel. Pensa ele ser uma definição voltada para um universal definidor de um grande homem histórico, um herói, o qual apreende o Espírito e faz de si instrumento realizador da razão, ou vontade de Deus. Para Nietzsche esse destino-guia é a religião dos fracos. Ele é um defensor do homem e sua natureza; a história, entendida como tradição, não oferece mais do que um peso, uma culpa a ser carregada. O homem nietzscheano deve se ver livre de tal peso, e viver sua natureza, entendida como a totalidade do seu potencial no presente.

          O homem moderno, de fins do séc. XIX, “prepara constantemente a festa de uma exposição universal através de seus artistas históricos” [13], diz Nietzsche. Ele é um fervoroso combatente dessa “festa” do progresso, acreditando ser mais uma “festa” do vil homem moderno, preso às tradições, carregado de impulsos contidos, cheios de vontade de potência malogrados; cenário esse imposto pela maior das tradições sedimentadas no mundo ocidental, o cristianismo.

          Esse querer moral, de livrar o homem de seus grilhões da tradição, requer uma revolução no pensar histórico que faria do espaço-da-experiência a sua vivência única. Não devemos nada ao passado, porque “aquele que pede conselho a história é pusilânime”[14]; a história  deve servir a vida, não nos aprisionar nela. Em Nietzche, não adentraremos à paruzia[15] num futuro conhecido.

          Nietzsche vê o excesso de história de seu tempo como uma doença que aprisiona os homens em uma observação demasiada obsessiva da cultura, em detrimento do “experimentar a vida”. O homem deve aprender a ser livre. Ser livre para Nietzsche não é seguir a Marcha da História alocando-se da melhor forma em seus padrões pré-determinados pelo destino, mas sim liberar sua vontade de potência, seu ser real, desprovido de construções culturais limitadoras, do peso do passado. É a “reivindicação do a-histórico” [16].

Paul Ricoeur
          O mais contemporâneo dos três, Paul Ricoeur, foi bem sucedido na difícil tarefa de contrapor a visão fatalista da história de Nietzsche, que no século XX, foi propulsora da desconstrução da história ciência. A consciência histórica então vigente foi abalada e não se colocaram soluções até Ricoeur. Um pouco de sua tese já foi apresentada, vejamos um pouco de sua visão sobre a consciência do ser-no-tempo, ligada as categorias de Koselleck.

          O filósofo francês coloca o homem novamente na história, agente vivente, feitor e significador da mesma. Voltando a citação feita na introdução deste trabalho, Ricoeur elucida que após as concepções de Hegel, fechada em si mesma, de Nietzsche, sem ponto de partida ou de chegada numa desconstrução de certa forma inconseqüente da sociedade, poderia existir uma conciliação entre o passado e o presente. O horizonte-de-expectativa é delineado pelo espaço-da-experiência, em um ciclo hermenêutico, criador de representações construtivas das experiências vividas.

          A história tem novamente seu lugar; o homem, no presente, é “afetado pela história” em Ricoeur. No presente estão contidos futuro e passado. O passado foi presente, o futuro será presente. Tanto o passado quanto o futuro são construções do agora, e, quando existiram, ou passarem a existir, serão presente. Logo, é no presente que vivenciamos nossa experiência. Configuramos tal experiência como memória do agora, chamada posteriormente de passado; configuramos também nossas expectativas no agora. Tais configurações serão refiguradas, dando vida ao ciclo hermenêutico ricoeuriano e sua história aberta, inacabada, constantemente repensada. A verdade relativista de nosso tempo.

          Por fim, todos autores citados têm em comum o fato de não se distanciarem da lógica Judaico-cristã de mundo. Os três, diga-se de passagem, com formação teológica protestante. Vejamos: Hegel, um explícito cristão em suas teses; Nietzsche, ardoroso crítico da cristandade, não perde seu querer de busca pela boa sociedade, creditando ao solução ao homem e seu potencial - apesar dessa se realizar no agora, no presente, não num futuro pós apocalíptico; Ricoeur, herdeiro das concepções temporais de Sto. Agostinho, norteia sua teoria da história por concepções cristãs de mundo. Questões e serem debatidas com maior profundidade em outro momento.

          Esse aspecto não pode ser relegado à segundo plano para o entendimento da história da consciência ocidental, sua auto-percepção enquanto ser-no-tempo; o que fazer e como agir em relação ao outro e a si mesmo. As concepções originais ainda são as mesmas, e uma ruptura completa não pôde ser averiguada. É a tese de Ricoeur em andamento, um autor é a refiguração do outro, numa espiral hermenêutica ainda incompleta. São problemas que se colocaram desde a fundação da pratica reflexiva, e que tomam uma direção específica em fins do séc. XIX. Esses problemas de filosofia, nas palavras de Gadamer, é o desafio da atual historiografia, questionar os mecanismos e lógicas da história, sua função e seu poder.


[1] RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. Volume 3. p. 359

[2] Categorias meta-históricas(para além do estudo da história) utilizadas por Reinhart Koselleck em seu trabalho “Futuro e Passado”, as quais serão discutidas adiante.

[3] KOSELLECK, R. Espaço de Experiência e Horizonte de expectativa: duas categorias históricas. RJ: Contraponto/PU[C]-RJ, 2006. p. 309

[4] Ibid. p. 310

[5] Ibid. p. 305

[6] GADAMER, H[-G]. O problema da Consciência Histórica. RJ: FGV. P. 58

[7] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm,. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 51

[8] Ibid. p. 17

[9] Ibid. p. 18

[10] Ibid. p. 71

[11] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich,. A Razão na historia: uma introdução geral a filosofia da historia. 2.ed. São Paulo: Centauro, 2001.

[12] Ibid.

[13] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm,. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 41

[14] Ibid. p.45

[15] Referência ao fim dos tempos cristão, a glória ou presença de Deus.

[16] RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. Volume 3. p. 405

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