quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Os serviços de inteligência no Brasil

Generais-Presidentes forjam ditadura
com bases nos serviços de inteligência
Me engajo aqui em explorar as formas que os serviços de informação atuaram no período da ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970; no momento e no decorrer do movimento engendrado a partir do Golpe de 1964. Para tanto entendo que é preciso recuar até a década de 1920 e entender os motivos da instalação desse tipo de serviço na esfera do governo e seus desdobramentos na história brasileira.
 
Na década de 1920 devido a conturbada situação social, agitações operárias, movimento dos tenentes, “pela segurança da Pátria”, é institucionalizada por essa demanda um esboço de serviço de inteligência, o Conselho de Defesa Nacional, para supervisionar e abastecer as instancias competentes do Estado com informações entendidas como pertinentes para o governo.

Algum tempo passado, após a regularização da situação de Getulio Vargas no poder varias instancias de inteligência do governo foram se ajustando até concentrarem no Conselho Superior de Segurança Nacional (CSSN). Com o advento do Estado Novo, em 1937, o Presidente Vargas decreta uma nova Constituição Federal que, em seu artigo 165 responsabilizava o Conselho de Segurança Nacional (CSN) pela coordenação dos estudos relacionados com a segurança.

Depois de Vargas e seu Estado Novo, num contexto de Guerra Fria, alguns órgãos antes instituídos com caráter provisório, devido a II Grande Guerra, são institucionalizados de forma permanente, como no caso dos serviços de inteligência, a época, o CSN. A Guerra ideológica, o anticomunismo, eram máximas das quais os governos alinhados não podiam fugir, por isso a necessidade de um órgão anti-subversivo. Em 1946, o então Presidente Dutra, a 6 de novembro decreta a lei nº 9.775-A divide sua secretaria em três seções. A segunda seção, o que viria a ser uma tradição, encarregou-se de coordenar os serviços de informação e contra-informação. A responsabilidade coube ao Sfici, “organismo componente da estrutura do Conselho de Segurança Nacional que passaria a ter o encargo de tratar das informações no Brasil.” ( Decreto-lei nº 9.775-A, de 6 de setembro de 1946).

No ato do Golpe Militar de 1964, a 1 de abril do mesmo ano, a instituição encarregada do serviço de informação era o Sfici. Para o coronel Ary Pires, no inicio dos anos de 1960 a segunda seção do CSN estava bem consolidada, “(...) estruturado nos moldes dos congêneres de países mais experimentados e em condições de atender aos múltiplos e variados aspectos da realidade brasileira, já apresenta um acervo de trabalho dos mais fecundos e eficientes propiciando elementos essenciais às decisões do governo (...)”. (OLIVEIRA, Lúcio Sérgio Porto. A história da Atividade de Inteligência no Brasil. Brasília: Abin, 1999). Em contraponto ao coronel Ary Pires, o general Tinoco, que participou da ocupação do Sfici em 1964, desacredita nas afirmações do Coronel. Para ele a instituição não era sustentável, e baseava seus estudos em “função de recortes de jornal”. (Carlos Alberto Tinoco, em entrevista ao Cpdoc, 1998).
 
Estudante é perseguido nas ruas do Rio de Janeiro, 1968

Na altura do Golpe, em 1964, o Sfici estava sob a direção de um oficial da marinha, o capitão-de-mar-e-gerra Ivo Corseuil; legalista, apoiava as reformas e o Governo do Presidente Goulart. Para esse ator político de primeiro plano do período, a agencia a qual servia estava sem recursos. Mas nem por isso deixou de averiguar a realidade e a estudar bons conselhos para o Governo. A questão era que o Presidente muitas vezes preferia opiniões pessoais às dadas pelo Sfici. Para Corseuil, de erros como a nomeação do general Galhardo para o comando do III Exército, viria a fraqueza de sustentação militar do Presidente, fraqueza esta que em grande medida contribuiu para uma falta de embate ao movimento golpista dos militares insurgentes. “Goulart [na ocasião da nomeação de um comandante para o III Exército, o mesmo que veio a se rebelar contra o governo] preferiu a opinião do ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, contra o parecer unânime dos oficiais do CSN.” (CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Jorge ZAHAR editor, 2005).

Deu-se o Golpe, os militares assumem o poder, e logo nos primeiros meses após o 1º de abril, com o dever de “assegurar a estabilidade da revolução”, o Governo do então General Presidente Castelo Branco, a 13 de junho de 1964, cria o Serviço Nacional de Inteligência, o SNI, órgão que viria ser o baluarte do controle exercido pelas Forças Armadas à sociedade. A lei que criava o SNI indicava que o órgão tinha como prioridades:

 (...)subsidiar o presidente da República na orientação e coordenação das atividades de informação e contra-informações; estabelecer e assegurar os necessários entendimentos e ligações com os governos de estados, com entidades privadas e quando for o caso com as administrações municipais; proceder à coleta, avaliação, integração das informações em proveito das decisões do presidente da República e dos estudos do CSN; promover a difusão adequada das informações.

Incorporando todo o acervo e pessoal do Sfici, passou a ser o principal setor da atividade de informação no país. E viria a ser o principal em relação às outras segundas seções das secretarias das Forças Armadas.

Para tanto era preciso criar uma estrutura de formação de especialistas para abastecer esse mercado em ascensão. A 31 de março de 1971 foi criada a Escola Nacional de Informação (Esni). Sediada em Brasília, era o centro de formação de especialistas em inteligência para abastecer de pessoal capacitado todas as outras corporações do setor. A escola tem sua estrutura teórica e prática calcada na experiência de seu dirigente, o general Ênio, em cursos de especialização na CIA (Central Intelligence Angency) e no FBI (Federal Bureau of Investigation), ambas as agências estadunidenses que tratam de Informação e contra-informação.

A Esni, entre sua fundação e o final da década de 1970 formava cerca de 120 agentes por ano, sendo que destes ¾ foram civis. Números que corroboram para a tese de que a sociedade civil de certa forma não esteve totalmente distante da realidade militarista do Regime instituído no golpe de 1964 e se aprofundou após os idos do ano de 1968, com o AI-5 e seus desdobramentos.

            Outros centros de informação e contra-informação foram institucionalizados dentro das Forças Armadas. Aos poucos ia se conformando a estrutura que atribuiu tanto poder de controle social ao regime militar.

Em novembro de 1957 é criado o Centro de Informações da Marinha (Cenimar). Até 1968, quando se deu uma reforma em seus estatutos e atribuições pelo decreto lei n° 62.860, de 18 de junho do mesmo ano, o Cenimar tratava de questões relacionadas à diplomacia, controle de fronteiras e do pessoal da corporação; após 1968 é atribuída a Cenimar a responsabilidade de garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem, através do emprego do poder marítimo. Com tais deveres, durante o regime, o Cenimar angariou a alcunha de órgão mais eficiente daqueles dos setores de informação das Forças Armadas. Seus oficiais eram grandes especialistas nas varias esquerdas brasileiras; se especializou no PCB, onde se infiltraram cerca de quatro oficiais. Devido ao grande prestigio, após os serviços prestados para o Cenimar, os especialistas eram encaminhados para o SNI.

Jornal faz menção à Ato Institucional nº 5
A Aeronáutica também tratou de criar sua segunda seção já durante o regime. Em julho de 1968 o Núcleo de Serviço de Informações de Segurança da Aeronáutica (N-Sisa) aparece com uma doutrina essencialmente anti-comunista. Seu diretor fundador, o Brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, um “oficial mais radical do que a média” (Sócrates Monteiro, em entrevista ao Cpdoc, 1995), estudou Intelligence na Escola de Inteligência Militar em Fort Gullick, Panamá, na cidade de Balboa; Escola essa que recebeu muitos Latino Americanos formando-os em doutrina de combate ao comunismo internacional e nacional. O N-Sisa é forjado aos moldes do Cenimar e do Centro de Informações do Exército (CIE). Em 1970 é reformado e aparece com o nome de Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa), subordinado ao Ministério da Aeronáutica.

Finalmente analisaremos os mais ativos serviços de informação; aqueles que em nome do Estado infiltraram-se na sociedade angariando mais do que informações, mas um controle da mesma em vários âmbitos. Criado a 2 de maio de 1967 pelo decreto lei nº 60.664 em função do combate à subversão - a priori não pretendia interferir em outras questões - o Centro de Informações do Exército (CIE). É o organismo de informação com o maior número de pessoal e o que mais se empenhou no combate à luta armada do final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970. De acordo com o general Fiúza, primeiro chefe do CIE, foi formado essencialmente pelo antigo pessoal da segunda seção do Estado Maior do Exército (EME).

Ainda Dentro das instâncias do exército existiam dois setores que diziam respeito a segurança interna, os Destacamentos [destacamentos porque não possuíam estrutura detalhada e organização fixa] de Operações Internas (DOIs) e os Centros de Operações e Defesa Interna (Codis). Sob a direção do Ministro do Exército operavam em conjunto com as polícias Federais e Estaduais; os Codis e DOIs conduziam todas as questões relativas à repressão.

Os Codis eram os que tratavam da luta armada. Subordinados ao EME e não ao CIE, funcionavam com membros das três Forças Armadas. Os DOIs eram relativamente subordinados aos Codis, pois mantiveram um alto grau de autonomia, eram seus braços operacionais. Seu pessoal não andava fardado, usavam viaturas frias, normalmente carros apreendidos, e possuíam instalações próprias. Foram os encarregados das prisões e dos Interrogatórios, sendo que alguns agentes haviam feito cursos no Secret Intelligence Service (SIS), na Inglaterra. O general Fiúza diz sobre o DOI:

O DOI pega, guarda e interroga (...) Na captura, em geral, os chefes das diferentes turmas são tenentes, capitães, e a turma é constituída de sargentos. (...) O pessoal da captura não é o mesmo do interrogatório. (...) As informações eram repassadas à segunda seção do EME, onde 10 a 15 oficiais especialistas trabalhavam nisto. (...) No interrogatório, o interrogador tinha que ser um homem calmo, frio, inteligente e firme. (...) Havia sempre um superior lhe monitorando. (...) Quem caía ia para a planilha. (...) As pessoas podiam ficar 30 dias presas, sendo 10 dias de incomunicabilidade.

Já em 1968, com o AI-5, é oficializado o engajamento do governo e das Forças Armadas no combate à subversão. E então, num plano engenhoso, em 1970 todas as instâncias dos serviços de inteligência, informação, contra-informação, foram unidas pelo então General Presidente Médici num plano de diálogo e melhor funcionamento dos serviços chamado Sistema Nacional de Segurança Interna (Sissegint). Dando amparo jurídico à participação das inteligências das Forças Armadas, principalmente do SNI, da segunda seção do EME, dos DOIs e Codis, aqueles que “colocaram a mão na massa” no combate à subversão, resultando na série de atrocidades e excessos cometidos pelo regime.

É um aparato gigantesco, de amplo alcance, o forjado pelos dirigentes do Regime Militar brasileiro nos anos de 1970. Regulam todas as instancias do cotidiano. Os agentes além de se infiltrarem nos âmbitos políticos, como nas agremiações do PCB, no próprio MDB; adentram as esferas pessoais, religiosas, como a Igreja Católica, devido à atividade subversiva de seus bispos dom Hélder Câmara e dom Pedro Maria Casaldáliga; além de prender, torturar, extirpar informações a força; controlam não só as informações que são dadas, mas em muitos casos são os que regulam a produção, ou até mesmo produzem a informação para o público brasileiro. Alguns jornais de grande tiragem como o Folha da Manhã, o Folha da Tarde, eram em grande medida supervisionados, e tinham ate mesmo em seu corpo jornalístico agentes especiais. O Folha da Tarde “(...) era tido como ‘o de maior tiragem’, devido ao grande número de policiais que compunham sua redação no pós-AI-5. Muitos também a conheciam, por isso, como ‘a delegacia’.” (KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: entre jornalistas e censores. In: O golpe e a ditadura militar quarenta anos depois (1964-2004). Org. AARÃO REIS, Daniel, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá. 2004)

Como visto, todas as instâncias da sociedade sofreram investigação, influencia, ou conseqüências das práticas dos serviços de inteligência brasileiros no Regime Militar. Era grande sua esfera de poder e influencia, mas não se pode notar que grande parte do malefício, gerador do estigma de repressor que o regime angariou, veio do trabalho destes.

(...) houve toda aquela distorção conhecida da penetração do sistema [...] o que era inicialmente programado para fazer uma coleta de informações, análise de informações e produção de uma informação legitimada final se tornou intensa atividade operacional na busca ou participação dos eventos.” (Sócrates Monteiro, em entrevista ao Cpdoc, 1995).

Inicialmente com o intuito de observador social, as agencias de inteligência se tornaram agentes ativos, direcionando o regime; debelando movimentos entendidos como insurgentes, conformando o sistema a mando das autoridades das Forças Armadas, que no período se confundia com próprio governo, o Estado brasileiro.


Para saber mais:

ANTUNES, Priscila Carlos Brandão. SNI & ABIN: uma leitura da atuação dos serviços secretos brasileiros ao longo do século XX. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2002.

CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Jorge ZAHAR editor, 2005.

KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: entre jornalistas e censores. In: O golpe e a ditadura militar quarenta anos depois (1964-2004). Org. AARÃO REIS, Daniel, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá. 2004

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O Ofício das Sombras. In: Revista do Arquivo Público Mineiro, Ano XLII, nº 1, Janeiro-Junho, 2006.

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